20 de Abril, 2024

Praça das Redes

Jornalismo cidadão | Redes e Comunidades

Um estudo de caso de integração interrompida de refugiados em Portugal

Clara Costa Oliveira

O que aqui se relata enquadra-se na investigação-acção por mim empreendida junto de migrantes e refugiado sem Portugal, no âmbito de meu trabalho voluntário em várias instituições que acolhem este tipo de público-alvo. A minha intervenção junto de várias famílias ocorreu, de modo informal, desde a chegada da grande migração de ucranianos antes da recessão económica, recolhendo material para os migrantes sírios retidos nas fronteiras europeias, etc. De um modo menos informal comecei a trabalhar como voluntária de um modo sistemático com este público-alvo em 2014, incluindo o momento de escrita deste artigo, que esteve a discussão pública em uma plataforma académica, sendo agora melhorado, antes da publicação final.

A vida atribulada dos migrantes

Em congressos, e nos vários tipos de media, ouvem-se poucos relatos de intervenção concreta com migrantes/refugiados , em Portugal. Os média divulgam usualmente ‘notícias’ de piedade e de ódio diversificadas e sem contextualização; na academia discutem-se estatutos legais e criticam-se estratégias políticas, sobretudo.
Após o fecho das fronteiras europeias, com excepção de Portugal e Grécia (que está sobrelotada de migrantes), com a alocação de migrantes permitidas pelo ditador turco em troca do silêncio europeu sobre a situação no seu país, grande parte das pessoas pensa que quando os migrantes chegam a Portugal possuem a vida resolvida e até, para alguns, possuem um estatuto favorecido face à população nacional.
Livros com histórias de vida atribuladas que terminam nos braços de instituições portuguesas são vendidos e apresentados em bibliotecas e academicamente. E no entanto nem todas as histórias de vida destas pessoas (re) começa a ser boa quando vivem em Portugal, como se verá neste estudo de caso.
Outros estudos de caso são mais promissores no que se refere à integração e autonomização de migrantes/refugiados com os quais tenho vindo a conviver, contruindo mundos de vida e de sentido; serão relatados posteriormente.

Trabalhar com (e não para) as pessoas

Desde já afirmo não acreditar ser possível fazer das pessoas «objectos de estudo» e simultaneamente promover a sua integração, mas antes, «posiciones que no buscan comprender la realidad concebida como datos, sino como acontecimientos, sucesos, devenires, experiencias y propuestas de investigación » (Hernández-Hernández. 2019, p. 12).
Trabalhar com (e não para) pessoas exige uma dádiva que gera confiança e só então pode ocorrer aprendizagem e co-educação. Trabalho com pessoas, e não com refugiados, sou um par de eles, não possuo títulos académicos entre eles, comemos juntos e entreajudamo-nos. Trabalhamos em comunidade e muitas vezes entre comunidades, comigo a fazer o elo de ligação . Não me peçam objectividade pois movo-me no paradigma da complexidade e só actuo investigando, e investigo agindo. Estes são os meus pressupostos, causa de afastamento de mim por parte de muitos nomes sonantes da quinta académica e editorial. Não me queixo. Não consigo, pois sou para com as pessoas com quem construo mundos de significação. Não posso queixar-me por aquilo que não são problemas.
A meu ver, falou-se, a partir de meados do século passado, de Educação Permanente e não de Aprendizagem Permanente, para enfatizar a sua dimensão sistémica e institucional, para explicitar que o principal destinatário deste princípio normativo é a sociedade política, o poder público.
Recordando aqui a visão de Bento ou Baruch Espinosa, cada pessoa realiza-se, cumpre o seu projecto de vida, tornando-se cada vez mais pessoa, isto é, concretizando, permanente e progressivamente, todas as suas capacidades, graças a uma interacção constante (física e intelectual) com o mundo físico (pelo Trabalho) e com os outros (pela Política) (Melo, 2012, p. 75).

Uma postura ética

Há porém algo em que não sou par: face aos olhos do estatuto profissional que detenho aos olhos dos outros. E é exactamente nessa frincha em que me encontro para reflectir. Por me ter sido pedido pelos meus pares, não identifico nem faço queixa formal do que presencio em cada dia, mas posso questionar no anonimato. Tenho que o fazer, por questões éticas, e isso eles entendem muito bem.
Literacy promotion is complex and connects with the whole of life at the individual and societal levels. Multiple actors need to be engaged in intersectoral collaboration to embed literacy in specific contexts that shape, facilitate and constrain the practices of literacy and the ways in which people may acquire it. Flexibility, sensitivity to the wider environment and a constant questioning of where written communication fits into people’s lives, livelihoods, relations and networks must underpin literacy promotion efforts. Based on programmes that emphasize respect, dialogue, negotiation and local ownership, the use of literacy will only grow if the purposes and needs of individuals and communities can be identified and built upon. Progress towards developing a culture of lifelong learning and a learning society will not become a reality without the recognition of non-formal and informal learning achievements and greater financial input” (UNESCO, 2017, p. 9).

Investigação-ação

Ao longo do relato deste caso, irá o leitor encontrar interligadas as fases fundamentais da metodologia da investigação-acção. Encontram-se interligadas por estarem subordinadas ao paradigma da complexidade, e daí sempre sujeitas a mudanças. São elas: levantamento de interesses e necessidades da população-alvo, construção e execução com a população de actividades e sua avaliação continuada; dado o estudo de caso ter sido interrompido nenhuma destas fases foi completada, strictu sensu. Os métodos utilizados são mencionados nas notas de rodapé deste documento, de nodo a possibilitar uma leitura corrida do texto. Faço-o por questões académicas pois, na realidade, a investigação-acção enquadrada no paradigma da complexidade confronta-nos continuamente com a ineficácia categorial das abordagens qualitativas validadas pela academia.
Este giro [ investigar com no method] no lo consideramos como una moda a seguir, ni como una invitación a poner el contador a cero de lo hecho hasta ahora, sobre todo en investigación cualitativa. Lo que consideramos es que sus aportaciones nos brindan espacios para el pensar y resituar la praxis de la investigación. Espacios que nos generan desafíos, interrogantes y necesarias críticas a los modos establecidos de conceptualizar y desarrollar la investigación educativa (Hernández-Hernández. 2019, p. 12).

Educação permanente e ONU

A educação permanente assenta nas ideias iluministas de Voltaire, entre muitas outras influências, e a criação de um mundo mais justo remonta a Kant de uma forma explícita. Se aqui acentuo esta linhagem é por ser nela que se ancoram também o quadro idealista actual dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS, que as nações vinculadas à ONU se comprometeram a cumprir até 2030 (incluindo, obviamente, Portugal).
Salientamos rapidamente a importância de alguns deles para a integração de migrantes e refugiados, fortemente articulados com os direitos humanos e direitos da criança enunciados pela ONU em 1948 e 1989, respectivamente. A figura mais importante da ONU para a criação de medidas concretas de salvaguarda destes direitos é provavelmente Thedodore van Boven:
’The interdependence between human rights, peace and development means that freedom from fear and freedom from want belong as much to the heart of the concept of human rights as political freedoms. This same interdependence assumes and requires that the wider recognition and acceptance of the human factor be made the central theme in all human endeavours. One of the most important challenges for the United Nations is the elaboration and implementation of approaches to problems, and strategies for solving them, which are based on respect for human rights’» (Ramcharan, 2018, p. 6).

Agenda das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas

Sobressaímos, no entanto, a importância de esses objectivos se deverem compreender não isoladamente, mas como fazendo parte integrante da realidade complexa (Morin, 2000; Oliveira, 2008) do mundo actual, que o próprio documento e diretrizes para a sua concretização o preconizam. Essa articulação epistemológica holista (Rorty, 1979; Oliveira, 2000) tem, com efeito, implícito que cada um dos 17 ODS se deve entender como fazendo parte da finalidade global do documento, ao mesmo tempo que essa dimensão teleológica é construída por cada um deles e pela relação entre eles. «A entrada em vigor da Agenda 2030 e dos ODS gera uma grande oportunidade de transformação em todos os países. É também uma enorme responsabilidade não apenas para governos mas também para organizações da sociedade civil, afinal esta é uma Agenda ‘das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas’ e a realização das suas promessas necessita de uma abordagem de longo prazo, inovadora e multissectorial». (Costa e Masle-Farouhar, 2016, p. 16)
Objectivo 2 Erradicar a fome. “Objectivo 4: Educação de qualidade. Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”; Objectivo 10 Reduzir as desigualdades; Objetivo 16 – Paz, justiça e instituições eficazes; Objectivo 17 –Parcerias para a implementação dos objectivos ODS.
Como se evidencia apenas pelos títulos dos objectivos, a integração de migrantes e refugiados pretende erradicar a fome, promover a paz e justiça. Embora Portugal providencie educação escolar às crianças migrantes, a literatura sobre casos portugueses demonstra como a educação de adultos não formal e informal promotora de integração eficaz na sociedade portuguesa é dificilmente compreendida como algo de urgente para reduzir as desigualdades, o que invalida a equidade enunciada nos ODS. Muitos dos migrantes encontram-se numa situação imensamente vulnerável; ganhar dinheiro para um teto e comida para a família é obviamente a sua prioridade, sendo por vezes apanhados em esquemas mais complicados de exploração insidiosa que apenas uma educação permanente de tipo não formal e informal os pode levar a compreender e, sobretudo, a agir.
As parcerias institucionais do objectivo 17 só podem funcionar se forem adequada e sistematicamente fiscalizadas em visitas não comunicadas anteriormente.
We argue that the idea of ‘’sustainability’ as a core value has slowly permeated policy and practice at governmental and institutional levels, in public and private policy, but that recent social and economic crises have revealed the fragility of both institutions and policies.Therefore, it is important to debate how sustainability can be interpreted and researched in the context of education policy studies, (Milana, M., Rasmussen, P. Holford, J. (2016), p. 520).

O caso em estudo em forma de investigação-acção

Perto da Páscoa de um ano recente foi comunicado por uma organização internacional de refugiados que uma família curda tinha entrado em Portugal e que precisava de ser acolhida e integrada, como tantas outras. O alerta foi lançado em Portugal em busca de uma instituição que a acolhesse, dado vir integrada num projecto internacional de acolhimento. Estávamos em pleno processo de fecho de entrada de novos refugiados na Europa, com excepção de Grécia, Portugal e Itália (neste momento já fechou portas).
Enquanto voluntária de uma das instituições que trabalhava com essa organização internacional no norte de Portugal, decidi contribuir para este desafio. Fui chamada por uma das instituições de acolhimento (IA) para a ajuda da integração da família em questão, tendo-me sido fornecida a seguinte informação: a família era constituída por um casal e quatro filhos, de diferentes idades, oriundas de um dos países onde minorias reclamam a existência de um estado curdo. Tinham chegado ilegais à Europa, como usualmente, tinham sido registados como vindo para Portugal, mas deslocaram-se antes para a Alemanha, clandestinamente. Obtiveram lá emprego (pelo menos o chefe de família, pelo que entendi), as crianças iam à escola (o que não fez sentido para mim dado estarem ilegais), mas entretanto algo de muito grave acontecera. O homem tivera um ataque cardíaco e fora levado para o hospital, onde fora imediatamente intervencionado. Após tal evento, a polícia reunira a família no hospital, algemara-os e dera-lhes a escolher a deportação ou o reenvio para Portugal.
De acordo com Crossweell
[…] as ‘fronteiras externas do espaço Schengen, na era da híper-mobilidade, não são verdadeiramente as fronteiras terrestres, mas sim os aeroportos ou espaços semelhantes’. Este autor designa esses espaços de imobilidade como ‘nós fronteiriços’ […]. Os acordos de Schengen podem igualmente ser percecionados como a abolição de fronteiras mas, na verdade, multiplicaram-se novos tipos de fronteiras, nestes nós. O Regulamento de Dublin determina que o primeiro país europeu a receber um pedido de asilo é o responsável pelo tratamento dado ao refugiado. O registo é feito com base num sistema de recolha obrigatória de dados biométricos (impressões digitais), que passa a fazer parte do sistema Eurodac. Em concreto, tal significa que um requerente de asilo que seja registado em Portugal, ou que para cá tenha sido transferido através da Grécia, ou Itália, por meio do sistema de “recolocação”, não possa pedir asilo noutro país membro da UE, aí trabalhar e viver permanentemente com a sua família sob pena de se transformar num imigrante “ilegal” (Santinho, C., 2017, p. 7).

Diagnóstico de interesses e de necessidades

Solicitei a ajuda de outras duas voluntárias (uma delas com formação dada por mim, minha ex-aluna), dado o número de elementos da família; da minha experiência anterior como voluntária em várias instituições, previa que estes dados fossem provavelmente incompletos, ou até eventualmente errados, algo que discutirei no final deste artigo.
Encontrei-me pela primeira vez com elementos desta família alguns dias depois da sua chegada a Portugal, em eventos de ocupação de tempos livres de férias lectivas da Páscoa, na instituição escolar na qual as crianças tinham sido integradas.
Apresentei-me às crianças da família em questão e as duas mais velhas responderam em inglês. Percebi que o inglês seria a possibilidade de comunicação oral com eles, embora o domínio da língua fosse muito diferenciado para cada um deles. Ainda assim, recorri à linguagem não-verbal e foram-se rapidamente integrando com o grupo na realização de actividades de lego e desenho e, posteriormente, de brincadeiras tradicionais portuguesas. Mantiveram-se os 4 juntos, como seria de esperar, mas interagiam com as outras crianças, sempre que por elas solicitadas. No meu diário de bordo apontei várias situações, das quais saliento duas. Antes de mais, o afecto entre eles (o mais velho tem uma diferença de 8 anos da mais nova) mas também o afecto da menina mais nova por mim, confiante e espontânea. Os outros três estavam claramente com reservas face a todo este contexto tão diferente, mas isso não os impedia de participarem .
A interacção com as outras crianças foi sendo cada vez mais fácil entre as crianças, mas algo estranho permanecia: a dificuldade da língua, por exemplo na compreensão das regras dos jogos portugueses. A opção minha foi sempre tentar que uma outra criança fosse a primeira a jogar, de modo a que estas 4 crianças percebessem as regras, e isso foi conseguido. Tentou-se não explicar nada em inglês, de modo a que as crianças todas colaborassem entre sim, e tal foi conseguido. (Oliveira, 2007).
Foi durante esse período que preenchemos um diagnóstico de interesses e necessidade com as crianças, previamente testado com outras crianças, nomeadamente curdas (de outra nacionalidade). O instrumento possuía também uma parte de imagens para facilitar o preenchimento pelo próprio público-alvo, sempre que possível. Na mesma época foi feita uma visita domiciliária a esta família e utilizou-se o mesmo instrumento com cada um dos pais.
Os resultados obtidos com esse instrumento foram os seguintes: até àquele momento, Portugal era o quarto país no qual se encontravam desde a sua fuga, por questões de guerra e perseguição por parte do ISIS/DAESH.
Todos se consideravam islâmicos (a mais nova não respondeu, por questões óbvias – possuía 4 anos) e praticavam diariamente os seus preceitos religiosos, nomeadamente iriam cumprir o Ramadão, com excepção das duas novas (tal como é usual, no islamismo).Consideravam-se bem acolhidos, mas com preocupações quanto à obtenção de emprego e quanto ao futuro dos filhos; estes, por seu lado, não demonstraram interesse específico em aprender português mas antes em serem bons alunos; alguns resultados foram reveladores da diferença entre os interesses dos pais e das crianças: enquanto a menina mais velha manifestava um grande interesse em ser boa aluna, o pai centrou a sua atenção no desejo de o filho mais velho conseguir obter classificações suficientemente altas para ser médico. Ele, por seu lado, manifestou como principal interesse jogar futebol. As crianças mais novas manifestaram personalidades bastante diferentes: a menina queria cantar e dançar, o menino, claramente mais tímido, não demonstrou especial interesse por nada; foi sempre a criança que permaneceu como a mais calada e por vezes assustada, ou confusa, face ao que estava a viver (tinha 6 anos, na altura, e foi por nós acompanhada até ao início dos seus 8 anos).
No que respeita à mulher, ela manifestou vontade de trabalhar (não usual nas famílias islâmicas com que trabalhávamos), cozinhar e costurar/bordar, embora tivesse sido dona de casa no país de origem. Posteriormente, informou-nos que quando chegara à Europa tinha tirado o hijab de imediato do seu traje diário .

Acompanhar para integrar


Poucos dias depois, o pai começou a trabalhar numa ONG (organização não governamental) como pintor de obras, recebendo o ordenado mínimo, a alguns quilómetros da cidade onde a família vivia (em casa registada em nome da IA); deslocava-se de autocarro, mas em alguns dias a deslocação de ida era complicada, pois a partir de determinada hora os autocarros escasseiam. Decidi continuar com o grupo de 4 pessoas (eu incluída) anteriormente mencionadas, para promovermos a integração da família, em moldes que anteriormente utilizara, em várias instituições, com outras famílias de refugiados, recorrendo ao seu domicílio, e que tinha surtido bons resultados com as outras famílias.
Além de encontros informais e telefonemas entre nós, foi-se elaborando um diário de bordo e foi criado por mim um grupo de facebook (onde foi incluída a pessoa responsável pela instituição), no qual íamos partilhando informação, de modo a que estivéssemos articuladas entre nós. Foi assim que dividimos as tarefas, nesta fase: visita à família numa tarde de fim-de-semana de 2 pessoas: uma para falar português com as crianças, e acompanhá-las nas actividades escolares, e outra para se centrar na oralidade de português com os pais. A casa possuía uma mesa na cozinha e uma outra na sala, o que possibilitava esta divisão, e assim ficou acordado com a família. Dado que a mãe se encontrava em casa toda a semana, considerou-se importante promover a sua integração na comunidade portuguesa, sendo que havia um encontro semanal num café português, depois de irmos buscar a senhora a sua casa. De seguida, deixávamo-la na escola das crianças, para ela as trazer de autocarro (2 autocarros) para casa, às 16 h.
Divididas as tarefas, deslocámo-nos as 4 num sábado ao domicílio da família, onde as outras voluntárias foram apresentadas; foi acordado com a família a distribuição de tarefas. Nesse dia estivemos uma tarde inteira a falar com os pais, sobretudo, tendo eles falado um pouco das suas vidas e nós das nossas, e daquilo que nos movia como voluntárias informais de integração de refugiados. O pai mostrou-se desencantado, quer com o trabalho que fazia, quer com o salário que recebia. Ainda que no seu local de origem trabalhasse também no âmbito da construção civil, a sua especialidade era na área de assentamento de material cerâmico, tendo-nos mostrado fotos de empresa que detinha, juntamente com um seu irmão. As fotos revelaram a excelência do seu trabalho, com pavimentos de cerâmica e de pedra. Confessou que, além disso, nos tempos livres, pintava manualmente, tendo-nos apresentado uma obra sua, de tipo autorretrato.
Na conversa informal que tivemos nessa tarde, obtivemos muita informação que não nos tinha sido dada pela instituição, e que se revelou muito importante no trabalho que posteriormente construímos com eles. O casal casou-se cedo. Sendo curdos, a linhagem islâmica que seguem é o sunismo (recusaram a identificar o xiismo como sendo islâmico «Shia?!!No, we islamic, no shia» (C2). Conseguiram fugir aquando da ocupação do ISIS da zona onde viviam; entraram na Europa via Turquia, depois Grécia; vieram a seguir para Portugal, e estiveram um mês na zona da grande Lisboa, em albergue social. Decidiram seguir clandestinamente para a Alemanha, por acreditarem que teriam mais facilidade em arranjar emprego.
Nunca pretendemos utilizar como método histórias de vida ; daí nunca termos forçado obter informação que não nos fosse fornecida espontaneamente, ainda que desconexa temporalmente (coube-nos a nós estabelecer o elo cronológico entre as narrativas que foram contado ao longo da nossa intervenção). Sabemos que o pai arranjou emprego na Alemanha e que a menina mais velha gostou de lá viver pois gostava do frio e da neve. Aos 37 anos este homem teve um ataque cardíaco e foi levado para o hospital na Alemanha, tendo sido operado de emergência. A sua situação ilegal foi detectada e comunicada à polícia. Após operação e alta hospitalar, foi comunicado à família pela polícia que teriam que sair da Alemanha. Tinham duas opções: serem deportados ou virem para Portugal, opção que tiveram. De salientar que a família não tinha sido reunida e algemada no hospital e no avião, como anteriormente nos tinha sido comunicado.
As crianças foram colocadas na escola que lhes foi atribuída pela IA, e a mãe fazia as lides domésticas. Ainda eu não me deslocara ao domicílio da família, e já havia pedidos no facebook de pessoas da IA a solicitar roupa, calçado, tapetes, etc para esta família (a identificação da família foi-me comunicada por Messenger). Divulguei o pedido e consegui um excesso de tudo que fora solicitado. Entreguei tudo na instituição. No entanto, em visitas à família, foram-me solicitados alguns dos artigos que eu entregara, pelo que de toda a ajuda que continuei a receber, comecei a selecionar aquela que me tinha sido expressamente solicitada pela família, e entregava-lhes directamente.
No início da chegada desta família começou a haver o boom de migrações e turistas na cidade e foi-me também solicitado que procurasse no mercado por casas para arrendar a preços razoáveis pois a instituição recebia 600 euros por família, e só em aluguer de casa desta família pagava 530 euros, sendo que a instituição deveria ainda pagar as facturas de água e luz com esses 600 euros, segundo informação da responsável pela IA. Passei a procurar quer via web, quer percorrendo caminhos diferentes dentro, e à volta da cidade, à procura de casas para arrendar. A questão do alojamento desta família (e de outras) nesta instituição foi uma das fontes de dúvidas e preocupações. A família afirmava aos voluntários que tinha direito a mais seis meses de alojamento do que o tempo atribuído pela IA; pode, no entanto, acontecer que o arrendamento do apartamento que ocupavam viesse a ser aumentado pelo senhorio e a instituição passaria a ter que pagar mais que os 600 euros que recebe pela família (e que eram geridos pela instituição, não pela família), a partir de informações que me foram transmitidas pessoalmente.
Posteriormente, o pai começou a trabalhar numa prestigiada empresa de construção da zona geográfica em causa de Portugal, com melhor salário, mas tendo que se deslocar cerca de 75 km todos os dias (o dia da família começava às 6 h). Daí ter sido uma grande alegria para todas nós quando ele passou no exame de condução prático. De seguida comprou um carro em segunda mão, indicado pela instituição, passando a poder deslocar-se nele para o trabalho e a dar alguma qualidade de vida à família aos domingos (dado ele trabalhar usualmente todos os sábados), motivo de crítica pela responsável da IA no grupo comum de facebook, que eu rebati.
Acerca do trabalho, uma das situações culturais interessantes que vivi com esta família foi a de tentar explicar porque em Portugal se trabalhava tão pouco (no entender do pai), na altura do 25 de abril, seguido do 1º de maio e domingos. A diferença cultural e a falta de conhecimento das respectivas culturas, por ambas as partes, foi um entrave. Passei a estudar mais sobre o Curdistão e os dias santos islâmicos (o dia das orações é a sexta-feira), mas o facto de serem curdos não me facilitou o estudo, dado que compreender a situação geopolítica e cultural daquela zona é árduo, como foi para ele perceber o que é Portugal inserido na CE. Considero que a questão do 1º de Maio não foi compreendida por ele . A existência de feriados religioso foi compreendida, embora esta família nunca tivesse tido quaisquer contactos com cristãos até à sua chegada à Europa, nomeadamente Grécia, país com devoção cristã ortodoxa, diferenciada daquela maioritariamente assumida pelo estado português quanto à celebração de dias santos, por feriado nacional.
Como disse anteriormente, mantínhamos informados todos os membros do grupo que trabalhava com esta família via grupo de facebook, sempre actualizado em cada visita, e que ia recebido elogios contínuos por parte da responsável pela IA.
Durante este período a mulher da família propôs-se elaborar peças de artesanato que começaram a ser divulgadas e vendidas, junto com peças de outras artesãs migrantes na mesma zona geográfica. Para ajudar a gerir especificamente esta situação, solicitei uma outra voluntária, indicada, desta vez, pela IA.
A educação informal dos adultos desta família foi ocorrendo sob minha supervisão, tendo por base em cada encontro das voluntárias as necessidades mais prementes de comunicação da família, recorrendo-se a métodos e técnicas de Paulo Freire (1997), Ander-Egg (1987; 1990), entre outros, no âmbito da educação não formal de adultos, promovendo a sua educação permanente e emancipatória A base era sempre a vida quotidiana; a seus pedidos, começando por nos focarmos nas palavras de construção e de limpeza domiciliária, dadas as suas profissões. A mulher começara a trabalhar na IA, em limpezas e como ajudante de cozinha, das 12 às 20 h, sendo que os filhos seguiam para casa de autocarro sozinhos, dado a instituição escolar não lhes assegurar transporte, embora o fizesse a outros alunos.
Foram momentos de grande aprendizagem mútua, pois tivemos que pesquisar palavras de material de construção que desconhecíamos totalmente via utilização de imagens da internet. A comunicação não-verbal foi muito importante (Oliveira,1999), porque o domínio da língua inglesa nestas palavras específicas não era de conhecimento de nenhuma das partes envolvidas, pelo que não podia ser utilizada como língua de apoio.
Nas férias de Verão, duas destas 4 voluntárias (eu incluída) deram apoio num programa de férias lectivas das crianças organizado pela IA, que incluíam crianças portuguesas (que pagavam por essas actividades) e refugiadas (as da nossa família, e de outras, da mesma zona geográfica). O nosso papel foi o de promover a integração por meio de danças circulares de vários países (portuguesas, inclusive) e de elaboração de jogos durante uma hora . De seguida, as crianças tinham uma hora de natação (com professora) em piscina e mais uma hora e meia livre na piscina. Por parte da IA veio sempre uma funcionária para o local, sendo as crianças cerca de 13. Após a aula de natação, as crianças iam para a piscina livremente; nós estávamos especialmente atentas às crianças refugiadas a nosso cargo, dado possuirmos com elas um contacto afectivo que as levava a pedir para estarmos junto delas, mas as crianças brincavam todas entre si.
Num desses dias, a aula de natação ia iniciar-se quando a professora disse que ia à casa de banho. Eu encontrava-me de costas a falar com a outra voluntária dos refugiados quando esta, de repente, grita o meu nome e aponta em direção à piscina: uma das crianças desta família encontrava-se dentro da água, na zona funda e sem conseguir manter-se à tona. Mergulhei de imediato e tirei a criança para a borda, levantando-a pelos ombros (quando estava debaixo da água vi submersos o pé e parte das calças da funcionaria da IA). Coloquei a criança enrolada numa toalha aquecida pelo sol, embrulhei-a e estive a embalá-la cerca de 45 minutos; ela não dizia nada; estava de olhos esbugalhados fixos num ponto imaginário. Fiquei vários minutos com ela assim, apenas embalando-a e abraçando-a. Fui pensando como a podia ajudar. Lembrei-me do percurso de fuga deles, da vinda pelo mar, e coloquei como hipótese que esta criança tivesse visto pessoas a morrer afogadas; talvez o seu olhar estivesse perdido nessas imagens.
Comecei então a falar lentamente com a criança, e perguntei se ele estava a pensar no passado, disse que sim com a cabeça. Perguntei se ela queria falar sobre isso, disse que não, com a cabeça; esperei, sempre embalando-a e comecei a falar do presente, do dia de sol, do jardim, dos meninos a brincarem, etc, e lentamente comecei a falar de tudo aquilo que o futuro lhe iria provavelmente trazer, ele foi prestando atenção, começou a olhar as outras crianças brincarem e o seu corpo começou a aquecer, até que disse que estava bem e foi lentamente brincar.
Ele fora atirado à água e tentei saber se fora por brincadeira ou deliberadamente, pois as outras crianças sabiam que ele não nadava. Quando cheguei a casa, escrevi à IA a dizer o que acontecera e a chamar a atenção para o perigo deste tipo de situações, onde até a única funcionária vai para uma piscina tomar conta de tantas crianças vestida e calçada, e de sapatilhas com meias (a senhora estava obviamente a tentar entrar na água quando eu retirei a criança da água). Recebi uma resposta lacónica. Meses mais tarde, a mãe da criança agradeceu-me em sua casa por ter salvado o seu filho, com lágrimas nos olhos.
Nessas férias desenvolvi uma relação muito próxima com essas crianças, pois tive de intervir algumas vezes para esclarecer e ajustar situações à sua cultura. Dou apenas um exemplo significativo.
No segundo ou terceiro dia de férias, a menina mais velha começou a não querer dançar, sendo que ela participara sempre com muito entusiasmo nesta actividade. Também não foi à piscina. Perguntei-lhe o que se passava pois ela estava claramente triste. Disse-me que os pais a tinham proibido de praticar estas actividades por estar com outros rapazes. Informei a IA telefonicamente e perguntei se lhe tinham sido fornecidas indicações dos pais nesse sentido, disseram-me que não.
Perguntei à responsável se queira que eu falasse com o pai da criança acerca do assunto, e ela disse-me que lhe ia telefonar. Passados uns minutos telefonou-me a dizer que o pai negava o que a menina tinha dito. Para não criar situações embaraçosas dentro da família, esperei pela noite e telefonei ao pai. Ele disse-me que não autorizava a menina (desdizendo a informação que a IA me tinha transmitido) por ela ser agora «uma mulher» (o que significava que tinha sido menstruada) e que na religião deles era assim. Eu perguntei se ele considerava que isso ajudaria a integração da sua família em Portugal, onde há liberdade de género para qualquer actividade, ou quase todas, e onde as escolas públicas são obrigatoriamente mistas, em termos de género. Ficou zangado e começou a falar do seu direito à sua prática e preceitos religiosos, bem como da sua responsabilidade educativa face aos filhos. Ouvi calada e deixei-o desabafar, aquele homem sempre fora muito sincero para mim e a sua atitude continuava a mesma, isso tinha que ser preservado para conseguir a trabalhar com eles.
Quando ele terminou de falar, falei eu, disse que lera e respeitava o Corão e as práticas muçulmanas, que certamente ele era o responsável pela educação de seus filhos até mesmo face à lei civil portuguesa (e não só ao nível religioso, como ele estivera a argumentar), que iria respeitar as suas decisões, mas pedia-lhe que pensasse em três coisas, tendo-as enunciado e depois reiterado que cumpriria as suas indicações até ordem sua em contrário .
Fiquei a pensar como podia ajudar a menina, que adorava estar na água daquela piscina, bem exposta ao sol todo o dia. Falei com uma filha de uma amiga minha, da idade dela, e expliquei o meu plano a ambas. Concordaram em ajudar-me. Telefonei ao pai da menina e pedi que ela viesse de fato de banho mas garanti que ela não estaria na piscina com rapazes.
Cheguei mais cedo do que o habitual; preparei uma actividade de tabuleiros de jogos para diferentes idades antes da aula de natação; logo que chegou a funcionária da IA expliquei o que planeara; ela ajudou-me a entreter as crianças enquanto eu me deslocava com aquela menina e a filha de minha amiga para a piscina, entretanto por mim trancada com um portão lá existente. Mas antes sentara-me em roda com as crianças e dissera com a maior das seriedades que tinha trazido uma amiga minha do meu grupo das danças circulares (de intervenção na comunidade, que realmente existe, e no qual participavam tanto a filha como a mãe a quem solicitara ajuda). Que precisávamos de saber danças do país do país daquelas crianças e que a menina ia ensinar as danças à menina portuguesa, enquanto eu ficaria mais tarde com elas, mais a funcionária, na piscina, como usualmente. Iriam dançar na piscina e depois a menina minha amiga iria ensinar o resto do meu grupo. Olhei fixamente para os irmãos da menina em questão enquanto falava, e eles perceberam imediatamente. Peguei pela mão as duas meninas e coloquei-as na piscina durante uma hora até chegar a professora de natação; de salientar que ambas nadam muito bem e que eu tinha anteriormente demarcado fisicamente o espaço que elas poderiam utilizar dentro da piscina. No entretanto, realizei actividades de costas para a piscina, tapando o campo visual das outras crianças.
Chegou a professora de natação e eu fiz sinal às duas meninas para saírem; de seguida expliquei a situação à professora de natação e as crianças foram para os balneários. Eu sentei-me na toalha e, de repente, o irmão mais velho desta família abeira-se de mim e diz-me que a irmã pode dançar e ir para a piscina, afinal; fiquei incrédula e disse-lhe que tinha falado com o pai deles no dia anterior e que as indicações eram outras. Ele disse-me que sabia, mas que ele tinha telefonado ao pai a contar o que eu fizera para a irmã conseguir dançar e nadar; o pai dera então ordens de que ela poderia dançar e nadar com pessoas masculinas, desde que ela estivesse sempre junto de um dos irmãos. Abraçamo-nos as três, eu e as duas meninas. Fora uma lição para todos nós: respeito gera confiança, reconhecimento e flexibilidade. No resto das férias correu tudo de acordo com estas normas, e a paz reinou.
No entretanto., mesmo durante as férias de Verão, os adultos da família continuavam a trabalhar, pelo que as sessões no domicílio decorriam aos domingos, único dia livre dos pais (o pai trabalha ao sábado para ganhar mais dinheiro).
Estas sessões tiveram como objectivo tentarmos empoderar esta família, nomeadamente com actividades como a gestão doméstica de despesas, noções sobre leis laborais, em Portugal, etc. O nosso trabalho era continuamente valorizado pela IA, até que houve uma mudança radical em 5 dias, aquando recebemos pedido de ajuda por parte da família dado estarem sem água. Isto ocorreu num fim-de-semana e duas de nós estiveram a acarretar baldes de água com a família até ao sexto andar onde viviam. Dado ser o pagamento das facturas da responsabilidade da IA, comunicámos a situação no grupo digital. A IA comentou inicialmente com afabilidade, remetendo para a falta de gratidão da família.
A IA, contudo, não resolvia a situação, criando um braço de ferro com o chefe de família que nunca conseguimos perceber, até a situação durar uma semana. As crianças deixaram de se deslocar à escola. O pai de família contactou-me telefonicamente e queria que eu lhe explicasse algo que eu não sabia nem era de minha responsabilidade (o que ele sabia). Com o seu mau inglês disse-me que tinha entregado as facturas para serem pagas pela IA, atempadamente, e que algumas tinham sido rasgadas à sua frente pela funcionária que as recebeu, e identificou. Dado não ter sido a funcionária usual, comuniquei o facto pois poderiam ter sido as facturas não reconhecidas como tal e daí a situação. A reacção começou a ser muito violenta, por parte da responsável da IA, afirmando que era tudo mentira, que os funcionários não se poderiam ter enganado, que eram todos excepcionais, etc.
A confusão acresceu com a constatação de que havia facturas em atraso de electricidade; uma das voluntárias que semanalmente estava com a família fotografou as facturas, dada a negação por parte da responsável da IA.
No meio desta verdadeira trapalhada, recebi telefonemas do pai da família furioso com a IA que nem transmiti, tentado antes apelar ao diálogo. Até que uma das voluntárias foi directamente aos serviços tratar do assunto, com o pai de família, mas não o disse senão depois de tudo estar tratado e acertado.
V 29.10.208 «bom dia tudo tratado a família já tem água. O sr […] pediu-me para transmitir o seu obrigada à [IA] e dra clara e pede desculpa por algum mal entendido […]».
Como diz o povo: «caiu o Carmo e a Trindade». Fomos acusadas de pagar as facturas da família (o que é completamente falso) e nunca chegámos a perceber o que realmente aconteceu. A nossa voluntária constatou que o pai de família tinha duzentos euros (em dinheiro) dado pela IA (segundo ele) e o resto do dinheiro foi ele que o deu. De salientar que sem a nossa voluntária, o assunto nunca teria sido resolvido, pois ele não domina nem inglês e nem sequer os números sabia em português. Ora, a instituição parece ter querido castigá-los (de quê?), obrigando-os a resolver tudo sozinhos, quando tal lhes era impossível. Ensinar não é de facto educar, pois pode não garantir aprendizagem passível de ser posta em prática.
Decidi ir à IA esclarecer a situação. O meu objectivo era sobretudo saber se eu poderia continuar o acompanhamento de língua portuguesa na IA às crianças da família (passara a fazê-lo semanalmente há vários meses – em espaço cedido pela IA- em vez de ao fim de semana, dado eu estar impossibilitada de estar com eles aos domingos), depois do que ocorrera, e tentar esclarecer o que na altura me surgia como um mal-entendido, ou vários.
Mal começámos a reunião interroguei a pessoa sobre o meu principal objectivo. A resposta que obtive foram duas horas de gritos e acusações de a equipe de voluntárias (e de mim, evidentemente, incluída, dado as coordenar) tentar fazer mais e melhor com esta família do que a IA. Fomos acusadas nomeadamente de os instigar a fazerem queixa da IA, e de isto estar a ser comunicado como comportamento a ter face à IA por outras famílias. Tentei manter a calma, por causa da família, tentei explicar que a interpretação que estava a ser feita era errada, argumentei, até que percebi que o melhor era calar-me.
Com mais de vinte anos no terreno em educação não formal e informal permanente de adultos, de estudo e prática de linguagem não-verbal, eu percebi o que se passava: a pessoa acreditava veementemente no que estava a afirmar, apesar de factos concretos que desmentiam a sua visão da realidade. Uma pessoa totalmente fora de controlo, que apenas interrompi três vezes: para lhe lembrar que não era sua funcionária pelo que a sua gritaria não teria quaisquer efeitos em mim; para lhe dizer que quando quisesse falar mal dela (todas as voluntárias estavam a ser disso acusadas) me dirigiria a ela pessoalmente, e para reiterar a pergunta que fizera no início da reunião, sobre se podia acompanhar as crianças na IA. Após me ter sido abruptamente aberta a porta como convite não-verbal para eu sair, a resposta veio a contragosto, já com pessoas a escutarem-nos: «com certeza, agradecemos-lhe muito» (Oliveira, 2013).
Obviamente que a manutenção das visitas à família por parte das voluntárias começou a espaçar-se e acabaram por deixar de aparecer até por o pai começar a alegar que precisava do domingo para estar a sós com a mulher e filhos, e que mais valia ser assim, embora salientasse que as voluntárias eram a família que tinham em Portugal.
Recebi mensagens privadas por parte da responsável da IA a provocar-me, a agredir-me psicologicamente, e pedir que fosse falar com ela. Neguei, dado o clima de grande tensão, que poderia prejudicar a família ainda mais, e dado o modo como decorrera a última reunião que tivéramos.
Recebi também uma mensagem a dizer que duas das crianças (a de 4 e de 12) tinham roubado na IA, e que eu deveria ter cuidado com meus pertences pois a primeira roubara dinheiro e a segunda um casaco. Respondi que tal nunca me acontecera.
As mensagens por parte da IA tornaram-se cada vez mais agressivas, acusando-me (e às voluntárias), grosso modo de desmerecermos o trabalho da IA, bem como pretendendo colocar-nos perante a família como heroínas, por os estarmos a ajudar. Bloqueei todos os contactos digitais com a IA mas ainda assim recebi uma mensagem SMS a mandar-me à m…., enviando votos de bom humor e «amizade usuais», da sua parte.
Num dos dias em que me encontrava a ajudar as crianças com os deveres de casa e língua portuguesa, no espaço cedido pela IA, surgiu a vice-presidente da mesma e disse que queria falar comigo. Começou a pedir-me contas de trabalho com voluntariado com uma outra família de refugiados, que tinham estado a trabalhar naquela instituição, mas que não tinham sido formalmente acolhidos por ela. Naquela altura, ninguém desta segunda família tinha qualquer ligação formal à IA. Falava alto e à frente das crianças; fui sarcástica tentando aligeirar a situação, lembrando que esta IA nada tinha a ver com o assunto que ela referia.
A insistência foi enorme, e houve uma tentativa acrescida de pressão psicológica, nomeadamente dizendo que o meu nome estava queimado na cidade e discursos afins. Pedi às crianças que arrumassem as mochilas e saímos da IA. Sabia que o meu trabalho como voluntária naquela IA terminara, mas não queria deixar o contacto com as crianças dada a extrema necessidade de serem integradas. Comuniquei por facebook à responsável pela IA desta minha decisão e saí do grupo de trabalho de facebook, que ela própria abandonara e uma outra voluntária também. Comuniquei a situação ao pai da família, propondo continuar o trabalho de apoio à língua portuguesa em outros espaços da cidade, nomeadamente de âmbito cultural. A sua resposta foi a de alguém que coloca o bem dos filhos acima de tudo, afirmando que tal lhe parecia muito bem.
Numa outra ocasião, no dia usual de estar com as crianças, recebi uma mensagem escrita num inglês perfeito, por parte da mãe (trabalhadora na IA) dizendo que estava no hospital por causa das vacinas das crianças. Aquela mulher, nem filhos, saberia escrever uma mensagem tão correcta naquela língua. Mais curioso foi terem enviado fotos de eles no hospital, sem eu lhes ter pedido, nem ter demonstrado qualquer dúvida.
À noite (quando sabia que estariam todos em casa) enviei mensagem por Messenger à filha mais velha (que é a que domina melhor inglês) a dizer que na semana seguinte estaria à espera deles na IA, cá fora, para os buscar e fazer um programa com eles. E assim fiz. Fui, no entanto, informada que as crianças não estavam na IA. Interroguei o pai pelo Messenger à noite, tendo-me sido dito que as crianças tinham sido dispensadas da IA muito mais cedo do que a hora habitual da hora em que eu os iria habitualmente buscar, e por isso se tinham vindo embora. Interroguei de novo o pai se ele queria que eu continuasse a estar com as crianças, ou não. Ele afirmou que sim.
Assim sendo, na semana seguinte comuniquei atempadamente à filha mais velha que os iria buscar num outro dia da semana por ter uma consulta marcada no dia habitual. Ela disse que sim, e que tinha percebido a mudança. No entanto, ao regressar do médico, recebi um telefonema via facebook da menina, que me disse estarem as 4 crianças na IA à minha espera; questionei-a sobre a situação e ela disse que não tinha percebido bem e que agora não tinham autocarro para ir para casa. Voltei para trás, toquei na campainha da IA e disse que tinha vindo buscar as crianças, mas que aguardava por elas cá fora. Enquanto aguardava, uma ex-aluna minha (funcionária à época na IA) passou perto da porta, olhou-me surpreendida e virou a cabeça, não me cumprimentando. Tirei conclusões pessoais, que as mantenho, até por essa pessoa ter deixado de comigo comunicar. As crianças demoraram a sair, mas eu não saí da porta da IA; quando chegaram, não fiz perguntas, e levei-as a casa de carro, dado já serem quase 19.30 h. Mas pedi que nos encontrássemos noutro dia da semana na semana seguinte, diferente do habitual e combinámos que assim seria. Pedi que viessem ter comigo num outro local, alegando maior facilidade de estacionamento (o que é real). Confirmei tudo isto via Messenger com o pai.
E assim foi. As crianças saíram para aparentemente irem apanhar o autocarro, mas dirigiram-se para o outro local, onde eu já estava. Fomos lanchar a um café dali afastado e falei com eles, sobretudo para a menina mais velha por causa da língua. Custou-me muito, dado ela ter 12 anos. Não entrei em detalhes, apenas expliquei que deixara de ser voluntária daquela IA, mas que gostaria de continuar a ajudá-los a integrarem-se. Pedi que ela falasse com os pais e lhes explicasse a situação. Que ficava a aguardar que o pai me dissesse se queria que eu continuasse, ou não a ir buscá-los, que iria enviar-lhe uma mensagem, mas pedi à menina que lhe explicasse na língua original. De seguida fomos comprar uma prenda para uma das crianças, dado ter sido o seu aniversário nessa semana. Escolheu um carrinho com comando, o mais barato que havia. Levei-os de seguida a casa.
Como resposta a minha mensagem, o pai disse que concordava que me encontrasse com as crianças nesse outro local, e pediu ajuda para encontrar uma casa pois a IA deixaria de os ajudarem breve. De imediato comecei à procura, contactando imobiliárias, fazendo buscas em sites e pedindo ajuda a pessoas amigas, sendo que ele me disse que só poderia pagar 300 euros por mês, o que realmente se tornava praticamente impossível, mas fui sempre tentando.
Na semana seguinte, as crianças surgiram no local combinado, mas com o pai, que estava de baixa médica, por acidente laboral. «Clara, I need a house» foi a sua primeira frase. Expliquei (com ajuda das crianças) a razão pela qual tal estava a ser tão difícil; ele mostrou-me sites nos quais andava à procura e vimos que eram diferentes dos meus e acertámos assim continuar. Aproveitei este encontro pessoal para lhe dizer que não pretendia ver a situação deles junto da IA ser eventualmente prejudicada por contacto das crianças comigo. Ele reiterou que o meu contacto com as crianças lhes fazia muito bem e disse que queria que nesse dia eu o fizesse, como usualmente. Elas entraram então no meu carro e fomos a um MacDonalds, algo que estava a ocorrer pela primeira vez nas suas vidas. Eles estavam muito contentes e muito humildemente perguntaram se podiam guardar parte dos seus hambúrgueres para darem à mãe, para que quando ela chegasse a casa do trabalho tivesse comida pronta. Emocionei-me com o cuidado e o amor demonstrado pela mãe, e dei-lhes dinheiro para escolherem o hambúrguer que consideravam que a mãe mais gostaria de comer, o que fizeram, muito contentes. De seguida os mais novos foram brincar num parque onde estavam crianças portuguesas e depois levei-os a casa. De salientar que todas as transações dos lanches eram feitas por eles em português, sendo que o dinheiro era por mim dado aos mais velhos eu deveriam conferir se o troco estava correcto, e sempre tudo correu bem.
Sempre que encontrava uma possibilidade de casa para arrendamento para a família, enviava mensagens para o pai da família, e ia recebendo indicação que eram ou muito caras, ou muito longe do local de trabalho da mãe. Até que houve interesse numa pequena moradia nos limítrofes da cidade, pela qual estavam a pedir 400 euros. Ele pediu que eu fosse com ele ver a casa, num domingo, mas tal era-me impossível. Disse-lhe que a fosse ver por fora e que eu agendaria visita num dia da semana posteriormente para a vermos de dia. A família acabou por lá ir no domingo e enviaram mensagem a dizer que tinham gostado da casa mas que demoraria muito tempo a levar as crianças à escola, voltar para casa e ir trabalhar às 12h.
Cerca de um ano depois de os conhecer, levei as crianças a um local com um pequeno parque para crianças. Posteriormente publiquei no Facebook (com cautelas de partilha e de modo a que as crianças mais novas não fossem identificadas nem mesmo visualmente, embora tivesse autorização dos pais para publicar fotos, o que a IA faz regularmente); não se tratavam de fotos públicas nem podiam ser partilhadas; coloquei o nome dos pais para caso eles quisessem partilhar nas suas páginas, o pudessem fazer.
O pai não partilhou, mas comentou quase de imediato na minha própria página de facebook, descontraída e positivamente as fotos; mas pouco depois recebi uma mensagem da mãe (a trabalhar na IA, que não permite o uso de telemóvel no horário laboral) num inglês perfeito a dizer que tinha sido publicitado na sua página (não devia ter filtros de partilha) e a pedir que eu retirasse as fotos, o que fiz de imediato, percebendo que alguém (que não o marido) lhe dera essa ordem. Nas fotos estava obviamente assinalado o dia (quinta-feira).
Na quarta-feira seguinte enviei a mensagem usual à menina mais velha a lembrar que estaria à espera delas na quinta-feira, dia seguinte. Recebi como resposta que não poderia estar presente dado a IA lhe ter solicitado tarefas para realizar naquele dia e naquelas horas. Na semana seguinte fiz o mesmo e nunca recebi resposta, tendo avisado o pai, e não tendo recebido resposta.
Continuei enviando mensagens com possíveis casas para arrendamento para o pai via Messenger. Um dia o pai telefonou-me por Messenger numa altura em que eu estava a trabalhar pelo que não atendi; nesse mesmo dia foi-me dito por um outro refugiado que conhece bem esta família, que ela tinha comprado uma casa e se tinha mudado. Entrei no facebook da IA pela UMINHO e vi a foto da família (incluindo crianças) a dar conta dessa compra e de que tal era um sinal de integração bem conseguida. Avaliei a situação e enviei mensagem para o pai, via Messenger, dizendo que dado já não precisar que eu lhe procurasse casa, e dado os seus filhos não estarem comigo, que lhes desejava as maiores felicidades. Desvinculei-me nessa altura deles no facebook, mas posteriormente retomei-a via Messenger; nunca houve, porém, retorno dessa mensagem, nem mais nenhum contacto pessoal com a família.
A IA colocou outros migrantes na casa que lhes estivera anteriormente atribuída. Pouco tempo depois, essa outra família (com um bébé de 2-3 meses, e mais 3 crianças, incluindo uma menina de dois anos) foi colocada porta fora dessa casa, para aí se instalarem outros refugiados, que acabavam de chegar a Portugal.
Conclusões
Após tantos anos de intervenção comunitária via educação permanente não formal, e informal, de jovens e adultos, há que admitir falhas pessoais neste processo interrompido, ainda que sobretudo problemas institucionais e organizacionais muito sérios. Portugal abriu as portas mas não se encontra preparado para promover a integração de migrantes, sendo sempre possível eles tornarem-se mão-de-obra barata para pseudo-benfeitores.
A falta de formação de técnicos especializados é talvez o maior problema que encontramos no voluntariado. A maior parte das pessoas pensa que a boa vontade é suficiente para este tipo de trabalho. Direi que é necessário, mas não suficiente, e no que respeita aos refugiados e migrantes estrangeiros, este pecadilho traz problemas gigantescos dada a extrema vulnerabilidade de todo o tipo em que se encontram (Oliveira, 2016).

A falta de rigor de informação no que respeita a dados básicos das famílias acolhidas é grave, para quem efectivamente promove a integração e a autonomia; há uma enorme falta de conhecimento e de reconhecimento acerca de crenças espirituais/religiosas e de pertença a etnias específicas, muito mais identitárias do que registos eurocêntricos onde o credo religioso é ignorado (como se tal o eliminasse, em nome de uma neutralidade iluminista) e a nacionalidade sobrevalorizada. “Fundamental será também a criação de campanhas de educação para o desenvolvimento que contribuam para um entendimento do papel de cada um como cidadão global, respeitador da diversidade porque reconhece a riqueza que existe em aceitar a diferença (Costa, N., Masle-Farouhar, 2017).
Além de identificar as crenças dos outros, é urgente estudá-las, compreendê-las, mesmo que não compreendamos aquelas às quais somos associados. Isso foi feito por minha parte quanto ao povo curdo, e pensava começar a explorar a especificidade curda quando o processo aqui narrado foi interrompido.
Isto remete-nos para outra questão: o tempo que cada família, que cada pessoa dentro de uma família precisa para se integrar é tão variado e diferenciado que exigiria uma formação efectiva e de muita experiência com populações discriminadas por parte das instituições acolhedoras. Quem tem experiência nesse âmbito, sabe perfeitamente que a escola não integra por si só uma família; aliás, às vezes até pode fazer acentuar o isolamento social das famílias, nomeadamente da de refugiados, neste caso. Reportando-nos aos ODS enunciados no início deste texto, podemos informar que a educação é pois apenas garantida a crianças, sendo que usualmente a educação permanente informal é praticamente descurada; existem formações não formais de língua portuguesa, mas que são frequentemente mal articuladas entre as várias instituições entre si. Os refugiados que se encontram a trabalhar, no caso desta família e outras, não sentem usualmente motivação em as frequentar e raramente dispensa laboral para o fazer, pelo que o ODS 4 é insuficientemente cumprido em Portugal UNESCO, 2017b).
No que respeita aos migrantes vindos de zona de guerra (como neste caso), precisamos de estudar muito, nomeadamente no âmbito geo-estratégico que cada região possui nos interesses das grandes potencias e da história destes povos, com culturas riquíssimas e da qual o ocidente nada nos ensina na escola. Posso referir que, ainda que enquanto académica, foi – e é- a tarefa mais difícil que tenho, mas muito necessária dado que a maior parte dos refugiados não conseguem, eles próprios, contar uma história (para si próprios) coerente do que aconteceu. A incapacidade narracional coerente tem vindo a ser considerada como uma das maiores fontes de sofrimento a que um ser humano pode ser assujeitado (Rorty, 1989), por não se conseguir contruir um sentido para aquilo que se viveu.
Equipas multidisciplinares específicas para este número crescente de população-alvo são imprescindíveis, supervisionadas por técnicos superiores de educação não formal com anos de experiência no terreno, nomeadamente em intervenção em comunidades desfavorecidas social e psicologicamente. Esses técnicos deveriam coordenar psicólogos, médicos, dentistas (a maior parte dos refugiados tem a boca numa lástima devido ao que foi comendo nos anos de fuga), assistente social e professores. Estas são recomendações básicas para começarmos a implementar os ODS 16 e 17.
Para que possam viver em paz, ter acesso à justiça e a instituições eficazes, o investimento das organizações governamentais tem que ser muito mais descentrado, de modo a que os migrantes e refugiados sintam ser necessário e útil para eles a sua inserção em programas de integração que, no caso desta família, não existem perto do seu local habitacional, deixando-os à mercê de entidades empregadoras que se percepcionam como benfeitores por os ajudar a eliminar a fome (ODS 2). Ainda assim, o que lhes é pago é usualmente muito pouco para que tal aconteça, sendo esse porém um problema presente grande parte da população portugueses que sobrevive com salários muito baixos.
As instituições acolhedoras apenas teriam que contratar o técnico supervisor, mas que teria que ter reconhecido esse estatuto perante todos os outros profissionais mencionados, e que poderiam incluir mentores do programa de integração do governo português. No entanto, o pagamento do supervisor deveria estar a cargo do estado e não das entidades acolhedoras, pois isso garantiria idoneidade profissional ao supervisor, ao qual deveria ser também atribuído o papel de avaliação das entidades ditas acolhedoras (inexistente, tanto quanto sei, no que respeita à integração e autonomia).
Como acontece em quase todas as áreas sociais, não existe uma articulação coordenada entre as várias organizações, e nem entre as várias instituições naquela à qual estão afiliadas, muitas vezes. Possuindo Portugal um programa governamental de acolhimento sabemos por experiência própria a insuficiência de meios humanos que ele possui, a falta de divulgação do mesmo, entre muitos outros problemas. ONG, programas europeus, internacionais e governamentais, além de associações específicas de migrantes/refugiados não sabem quem faz o quê, nem porquê, nem como, nem tão pouco com que dinheiro, a maior parte das vezes. No meio deste caos existem profissionais esforçados e a boa-vontade de voluntários aparentemente vinculados a instituições/organizações, ancorados no terreno actuando em auto-gestão sem rectaguarda. Estas são outras recomendações para a concretização dos ODS 16 e 17.
Em termos pessoais, tenho que assumir algumas debilidades na minha actuação. Em 27 anos de terreno com populações discriminadas e/ou desfavorecidas fui sempre encontrando problemas com os técnicos institucionais. Tal não constituiu uma surpresa para mim, e por isso tentei salvaguardar a família de várias situações em que fossem confrontados entre terem que escolher entre trabalhar comigo ou com a IA. A existência de duas técnicas superioras de educação não formal (tendo sido minhas alunas em várias ucs, e com relacionamento pessoal posterior) na IA criou-me, no entanto, a ilusão de que algumas garantias de trabalho bem feito estavam asseguradas, bem como a minha supervisão informal de voluntárias de minha confiança profissional. O erro que cometi foi acreditar que a formação humana dessas pessoas não seria maculada fortemente pelos problemas acima enunciados. Isso veio no enanto a ocorrer no primeiro caso (penso que por medo de perda de emprego), quer no segundo caso. Com efeito, as voluntárias informais não conseguiram resistir ao assédio moral e psicológico a que fomos assujeitadas, nem conseguiram ter coragem suficiente para colaborarem comigo na exposição mais detalhada das razões que levaram a que esta família tivesse o seu processo de integração interrompido.
Se sempre gostei de trabalhar com pessoas e não com instituições, preferencialmente, este estudo de caso fez-me ter que assumir que o meu juízo sobre o valor ético e deontológico de pessoas por mim formadas e supervisionadas fora errado. Lição para o futuro. Dura, porque significa que o ODS 10 não é tido em consideração pelos profissionais que formo, sendo nele que assenta toda a formação que lhes é fornecida ao nível da educação permanente não formal e informal dentro de comunidades, refugiados ou de outros grupos.
Assim, considero que os “refugiados” não são representados na sua individualidade, como pessoas que possuem características distintas, que vêm de países diferentes, com religiões, profissões, desejos e condições de partida diferentes. Estas práticas tendem a silenciar os refugiados e a vincar, ainda mais, a distância entre o “nós” e o “eles” em termos de dinâmicas sociais e culturais. Estes aspetos potenciam a construção e a consolidação de discursos que promovem atitudes de exclusão, mesmo que estas, em alguns casos, estejam nas entrelinhas. (Carapeto, p. 63)

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Clara Costa Oliveira

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