Da Nuvem e de Juno (e dos seus indesejados frutos…)
Artur José Vieira, 9 de abril de 2020
(Coordenador do Centro Qualifica do Agrupamento de Escolas Damião de Goes, Alenquer)
Trata-se de um texto de opinião; o seu conteúdo não vincula o Centro Qualifica nem, muito menos, a sua entidade promotora…
Conta a lenda grega – que chegou até hoje através dos romanos – que Íxion (o primeiro humano a assassinar um familiar, gente fina, já se vê…), após matar o sogro, foi acolhido no Olimpo pelo próprio Zeus e aí pretendeu conquistar a esposa do Pai dos deuses, Hera (rebatizada pelos romanos de Juno). Conta a tradição que Zeus lhe enviou uma nuvem, com a exata aparência de Hera, pela qual Íxion se perdeu de amores…
Um sol salvador
A analogia surgiu-me como evidente, ao acompanhar com entusiasmo e franco otimismo, os testemunhos de tanta gente, da rede Qualifica e da Educação de Adultos ao ensino formal de jovens e crianças: de repente, no meio da tragédia, mais do que a Luz ao fundo do túnel, um novo Sol que tudo cura e tudo salva: o Ensino a distância e as tecnologias e plataformas digitais. Eu incluído, claro está…
Desenrrascanço ou a sério?
Não estamos todos a «descobrir» o Ensino a distância (E@D): nem as Escolas, nem as Universidades, nem os Centros Qualifica. Estamos, muito lusamente, a «desenrascar», a usar procedimentos e meios de comunicação e interação a distância, contornando o isolamento forçado. Mas o ensino a distância não é exatamente isto que vemos agora: quando existe, e existe em alguns lados e muito bem feito, ele é um Modelo Pedagógico Integrado, com coerência entre objetivos e finalidades, currículos, metodologias, dispositivos de avaliação, organização de tempos, adequação aos públicos-alvo, enfim um modo coerente de organização do Ensino para um tipo específico de Aprendizagem. No caso dos processos de RVCC no quadro do Programa Qualifica, há ainda especificidades que tornam tudo um pouco mais complexo.
Na Ágora de Atenas
Algumas delas: na verdade, de um certo ponto de vista mais rigoroso, o RVCC não é, tipicamente, um processo de ensino-aprendizagem. É-o também, e deverá sê-lo: mas na verdade, em muitos aspetos, é quase o seu oposto. É um encontro entre dois mestres e, em simultâneo, dois discípulos. O processo de Reconhecimento é, por natureza, um diálogo entre «quase iguais»; mais adequado à intimidade e proximidade de um Sócrates (o Antigo: que irritação, a necessidade de esclarecer…), a subtileza da Ironia e da Maiêutica, fazendo nascer o caminho para a desocultação do aprendido (ao longo da Vida). Mais do que a simples tradução da linguagem de Um para a linguagem de Outro. Que seja este diálogo nos pórticos da Ágora de Atenas, aproveitando a frescura da sombra, ou à velocidade da luz, no mais updated gadget, é irrelevante. A nuvem é um simulacro.
Mestre ourives ou formador turbinado
O mesmo da construção da narrativa (auto)biográfica: o trabalho meticuloso de alargar, aprofundar e enriquecer o seu conteúdo e construir o sentido (evidência da competência) requer muito mais da minúcia, paciência e precisão de um mestre ourives, adoçando e moldando o metal para produzir uma filigrana de sentidos e coerência, do que a elevada performance de um formador turbinado em inúmeras plataformas, ambientes e recursos digitais. O objeto do amor é Juno. A nuvem é bela, sedutora e, afinal, obra divina. Mas a amada é Hera.
Centauros, os frutos indesejados
Deixemo-nos, pois, seduzir, encantar, até mesmo apaixonar pela nuvem. Mas o nosso amor deverá ser todo para Juno. Senti um arrepio quando li: «A qualificação à distância de um clique!» – já passámos por isso.
Voltando à lenda: Íxion copulou com a nuvem e dessa união resultaram frutos indesejados, os Centauros, metade homens, metade cavalos. Símbolos da força bruta, insensata e cega. Nestes tempos de isolamentos e tragédias, tratemos de continuar a ser sensatos e clarividentes. E ativos, como felizmente estamos.
Editado, subtítulos, Carlos Ribeiro – Praça das Redes