Qualificar o Qualifica
Carlos Ribeiro / Caixa de Mitos
Pare, escute e olhe. Um resultado pode esconder um impacto indesejado.
Foram recentemente divulgados dados provenientes do MTSS sobre a execução dos últimos dois anos do Programa Qualifica que teve início em 2017 e para o qual foram estabelecidas metas até finais de 2020.
Balanço e reflexão
A intenção de apresentar um balanço para um período de actividade de dois anos é muito positiva e esta avaliação, a meio caminho, poderia até suscitar alguma reflexão sobre uma iniciativa que é da maior importância para o desenvolvimento do país e o bem-estar dos portugueses.
Tudo indica que o assunto foi tratado em círculo fechado e na base de dados meramente quantitativos, informações e estatísticas que permitiram aos responsáveis e protagonistas das acções levadas a efeito afirmar com grande satisfação: “missão cumprida! Estamos no bom caminho para atingir as metas apontadas para o final do Programa, ou seja, a inscrição de 600.000 adultos!” Para este efeito fizeram fé os 315.000 que foram registados nos 300 Centros Qualifica espalhados pelo país.
Qualificar é preciso
O relançamento de um Programa para os adultos portugueses terem acesso a dispositivos de educação e formação, outros que aqueles que integram o sistema formal de ensino e formação profissional, deve ser valorizado porque exprime uma política pública inclusiva visando alargar o campo de oportunidades a todos aqueles que não puderem, pelas mais variadas razões, concretizar o percurso de qualificação que poderiam e eventualmente desejariam, a seu tempo, ter realizado.
Nestes termos a organização de equipas e centros especializados para intervir nesse domínio específico constitui uma aposta plenamente justificada e o investimento de 200 milhões de euros, de fundos comunitários, um valor bem utilizado na educação e na qualificação.
Os conceitos, esses chatos que podem incomodar
Se nos ficarmos pela rama e à superfície deste processo necessariamente complexo poderemos partilhar da satisfação que os resultados anunciados provocam. Se entendermos que a matéria exige um pouco mais de profundidade teremos que adiantar algumas notas, sobre alguns conceitos-chave nomeadamente sobre as noções de resultado e de impacto e ainda sobre a relação deste quadro de actuação com o desenvolvimento sustentável.
Adiantamos de seguida algumas notas sobre mitos e utilizações enviesadas de conceitos estruturantes e comentamos algumas práticas que, eventualmente, poderiam melhorar.
Sacré Charlemagne!
Desde logo o slogan NUNCA É TARDE PARA APRENDER. A sua utilização como referência central radica na própria negação do sentido fundamental do programa. Porque o que se pretende em primeira instância é valorizar o que o ADULTO JÁ APRENDEU e em segundo lugar porque as aprendizagens realizam-se em todos os contextos de vida e NÃO PRINCIPALMENTE NOS CENTROS QUALIFICA. No fundo há aqui uma recuperação de uma ideia de fundo que é a do REGRESSO À ESCOLA. Ou seja, não seria demasiado tarde para regressar aos bancos da escola.
Importa resistir a essa tentação escolarizadora do sistema, resistência tanto mais difícil quanto a localização da grande maioria dos Centros ser nas escolas e o próprio ambiente condicionar as melhores intenções que possam existir de uma abertura do sistema ao não-formal e informal da aprendizagem.
O que é parcial é (pode ser) bom!
Uma segunda referência, que importa interpelar, consiste na dinâmica “certificadora” nos processos de RVCC. Sendo um processo de validação de adquiridos pela experiência, o mais natural do mundo, será que os adultos – candidatos a uma certificação vejam as suas competências validadas, as que corresponderem ao enunciado do Referencial de Competências, mas que o processo de certificação acabe por ser preenchido apenas parcialmente atendendo às competências demonstradas. É O MAIS NORMAL DO MUNDO e um adulto que vê validadas competências para TODAS AS ÁREAS EXIGÍVEIS para concluir o processo de certificação (que sabemos estabelece uma equivalência aos diplomas de base escolar e profissional) é no mínimo “empurrado” para algo que ele próprio não acredita e que o coloca numa situação auto-avaliativa de desvalorização do seu esforço e da sua dedicação. Prevalece, em muitas destas circunstâncias, uma cumplicidade informal em torno de um objectivo meramente pragmático “obter um certificado” e desaparece o valor do desenvolvimento pessoal e simultaneamente o próprio valor social das competências que se diluem numa nova expressão da promoção social através de um diploma.
Ai! formação, formação!
Uma terceira referência prende-se com o mito da formação. Instalou-se a ideia que a formação, como processo participado e/ou assistido pelo adulto, desenvolve competências. Um equívoco dramático, que serve as estratégias “formalistas” da “caça às evidências” para justificar complementos formativos para os processos de certificação. Importa relembrar que estamos a lidar com COMPETÊNCIAS, ou seja, a demonstração na acção da capacidade de enfrentar e resolver situações problemáticas mobilizando conhecimentos, habilidades e atitudes adequadas às situações concretas e contextualizadas.
A formação pode ser útil ou até profundamente inútil (muitas vezes, quando decorre em ambiente escolar, fortemente orientada pela figura professoral, aumenta o sentimento de impotência e reforça a necessidade de mobilização de recursos internos para desempenhar o papel de “formando”) mas não pode ser a base para validar competências, tout court.
Experiências com valor transformador
Uma quarta referência tem a ver com o quadro de participação nas actividades que são proporcionadas aos adultos. Predomina a lógica da OFERTA (o que temos para OFERECER aos “utentes/clientes”), sessões, visitas, formação…. A base de actuação poderia estar focada na organização de acções em torno de projectos orientados para a resolução de problemas dos próprios adultos participantes. E, cada um-a poder encontrar nas ações em desenvolvimento algo que seja importante e prioritário para a sua própria vida. No centro do processo pedagógico/andragógico deveria estar a acção e a possibilidade de viver experiências com valor transformador.
Educação comunitária, para comunidades sustentáveis
Uma última referência relaciona-se com o esforço que importa realizar para integrar as dinâmicas dos Centros nos processos de Educação Comunitária local. A ligação às associações, aos clubes, aos grupos de teatro, às escolas de dança e de música torna-se essencial. A título de exemplo podem ser co-construídas peças colectivas de Teatro Comunitário e serem dinamizadas iniciativas concretas relacionadas com o desenvolvimento sustentável como a produção de artesanato a partir de objectos reciclados. A paixão pela aprendizagem, pela leitura, pela cooperação, pela partilha e pelo sentido de comunidade tem que ser incentivada. Caso contrário os Centros tornam-se lugares tristes e acabam por imitar muitas das situações que os alunos mais jovens conhecem nas suas escolas “aborrecer-se de morte nas aulas” quando há tanto para aprender e viver, de forma entusiástica, na relação com o conhecimento.
600.000
600.000 até finais de 2020. Inscrições. Mas quantos processos de desenvolvimento pessoal e comunitário que acrescentam valor e que se inscrevem nas dinâmicas do desenvolvimento sustentável? Opção entre resultados sem (ou com pouco) impacto social ou impacto social através de resultados que importa atingir, para que o impacto seja efectivo.
Carlos Ribeiro, 18 de Abril de 2019