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Programas de intervenção nos bairros e o poder de agir das populações locais

PR | 13 setembro 2020 | A propósito do programa Bairros Saudáveis e de outros que não saem da cepa torta.

Quando surgiu a primeira linha de apoio específico para os bairros ditos críticos , depois da vaga de incidentes nos bairros a nível europeu e com destaque para a La Courneuve nos arredores de Paris, o desenho do programa foi realizado com o envolvimento de organizações diversas e foram até experimentadas metodologias de levantamento de problemas participadas e de construção de soluções numa abordagem colaborativa.

A ideia-força que presidiu a todo o processo foi a da construção de autonomias e até de empoderamento das populações locais. Mas na verdade os resultados ficaram muito aquém do esperado. Importa saber porquê e sistematizar algumas ideias para as ações futuras.

A experiência que vivi nesse âmbito foi no Porto, no Bairro do Lagarteiro, como coordenador dos temas do emprego, da formação e do empreendedorismo numa equipa da FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto liderada pela Teresa Sá Marques.

Boas intenções

A abordagem que tinha sido sistematizada em ações de formação com equipas do ISCTE e do Instituto de Urbanismo e Habitação assentava na organização de grupos locais que seriam o suporte das iniciativas de diagnóstico e da posterior implementação de medidas e ações do plano de intervenção local.

Tendo sido uma das primeiras equipas a ir para o terreno, levávamos connosco intenções de promoção do autoemprego, de processos de validação de competências numa base comunitária, de iniciativas de cultura popular e até de modalidades de auto-organização que tínhamos experimentado nas Oficinas de Projectos em São João da Madeira. Ou seja, da nossa parte não íamos descalços e teríamos sempre algo a sugerir ou a propor face a condições locais muito concretas.

O universo do bairro

Realizávamos as nossas atividades de auto-organização na escola, um espaço central no bairro que beneficiava de uma espécie de estatuto de “equipamento intocável”.

Ali não entravam dealers, bebidas alcoólicas, confusões inter-familiares e tudo o que no dia-a-dia marcava aquele território.

Recordo-me que para entrar no bairro tinha o cuidado de telefonar antecipadamente a alguém que asseguraria que a viatura passaria pelas malhas da “operação stop” física ou de observação a distância, sem problemas.

Os elementos metodológicos estruturantes e até críticos da primeira fase de intervenção podem resumir-se a algumas referências centrais tais como:

  • transparência nos processos pondo todas as cartas em cima da mesa e principalmente partilhando as dificuldades e até as incompatibilidades. Uma delas consistia na secundarização dos elementos da comunidade de etnia cigana que no entendimento de muitos não deveriam participar nos projetos concretos;
  • a co-gestão das atividades e a comunicação sistemática das decisões tomadas e da evolução das tarefas em curso. Existia um painel (papel cenário) de grandes dimensões com um cronograma das ações e com informação sobre recursos, responsabilidades e períodos de execução. Uma das incompatibilidades situava-se na composição da estrutura de coordenação do projeto que devendo ter maioria dos residentes deveria também assegurar uma representação com igualdade de género o que não acontecia por opção de várias mulheres que não queriam participar certamente pressionadas pelos maridos ou namorados;
  • a co-responsabilização na implementação das medidas, sendo invariavelmente um elemento da comunidade local o-a coordenador-a de cada projeto específico. A incompatibilidade neste campo das relações de poder e da construção dos processos de autonomia surgia por via da contradição que se verificava nos timings desenhados para as ações e as disponibilidades reais dos residentes do bairro para assegurarem, por eles próprios e ao ritmo compatível com as suas ocupações, as ações previstas.

 Estes três elementos de processo são apenas ilustrativos de algumas questões que se colocam neste tipo de programas nomeadamente a criação de condições para que alguns objetivos fundamentais sejam atingidos:

Facilitar e promover o Pode de Agir

1º O primeiro objetivo de toda e qualquer associação não-local ou estrutura de intervenção neste tipo de situação

é de assegurar que se torna dispensável no final do programa.

Para tal terá que ter um projeto preciso, dentro do programa,  de promoção do PODER DE AGIR das pessoas e das comunidades locais facilitando processos de autonomia e de auto-organização.

2º Os programas com financiamento público devem ser colocados à disposição das populações locais e devem ser avaliados localmente nas suas vertentes programáticas e financeiras. Uma total transparência deve ser assegurada e todos os elementos relativos aos projetos devem ser públicos.

3º O programa deve ser coordenado por uma Equipa mista que deve incorporar maioritariamente homens e mulheres do local.  

A relação das comunidades locais com o programa não deve ser de participação apenas, deve assumir um caráter de comprometimento e de co-responsabilização que necessita de ser traduzido numa co-gestão democrática e sistematicamente negociada.

4ª As funções de coordenação e animação nos projetos devem ser partilhadas e progressivamente colocadas na responsabilidade dos membros da comunidade local. As competências dos técnicos que intervêm neste tipo de programas devem ser avaliadas principalmente nesta vertente da construção de novas relações de poder no seio das equipas.

5º A batalha pela continuidade das ações que o programa lançou, quando ela se justifica, deve ser assumida pelos participantes naquelas ações em concreto e, ainda no decorrer do processo, serem levadas a cabo iniciativas nesse sentido.

6º As ações para serem viáveis e exequíveis têm que basear-se nas prioridades dos potenciais participantes. Nesses termos a ideia dominante deverá ser sempre resolver problemas imediatos com recursos de pequena escala e imediatamente mobilizáveis. Nesta linha de simplicidade e utilidade é possível assegurar processos de co-gestão e de governança geral participada.

Estes temas serão partilhados no âmbito da consulta pública a decorrer no Programa Bairros Saudáveis.

Carlos Ribeiro – 13 de setembro de 2020

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